O Caminho de Santiago


    Ao fim de uma semana chegámos por fim a Compostela. Algo cansados, abençoados pela chuva habitual por aqueles lados. Não com aquela sensação esfuziante de quem termina algo, de quem acaba uma etapa ou concretiza um sonho mas com a tristeza do fim do caminho. Senti mais do que nunca a veracidade da frase " de que não interessa o destino da viagem mas a viagem em si".
    Olho para a minha compostela com incredulidade. Fiz algo que já milhares antes de mim fizeram, nenhum feito ou nada tenho a acrescentar, mas aquele documento é a prova do caminho que EU fiz. E ninguém o fez da mesma forma.



    Não interessam os quilómetros, qual o caminho que percorri ou em quantos dias, mas sim o que senti ao longo do mesmo.
    Parti sem objetivo concreto. Talvez com a ideia lírica de fazer o Caminho, talvez com intuito de encontrar algum alimento, na minha busca de crescimento espiritual. Amante das caminhadas, parecia-me lógico fazê-lo. 
    Parti na melhor companhia. 


Calcorreei estradas e caminhos, passei por bosques, aldeias, vilas e cidades. Vi sítios bonitos e outros nem por isso. Vi a marca nefasta do homem, destruidora do nosso bem mais precioso, o nosso próprio planeta. Senti a calma dos locais remotos, perdidos no tempo e a balbúrdia e a animação das cidades. Percebi a solidariedade de quem percebe o que é o Caminho e a indiferença de quem encara o peregrino como fonte de lucro.




























    Encontrei novos e velhos, homens e mulheres. De vários cantos do mundo, mesmo os mais remotos. Porque para alguns era um sonho a realizar. Caminhámos juntos, com maior ou menor dificuldade. Partilhámos todos a mesma rotina: levantar, comer, caminhar, comer, dormir, em dias sucessivos de uma simplicidade incomparável, numa rotina que apazigua. Li algures num blog sobre o Caminho que no final fica sempre o vazio, a angústia do regresso à normalidade. Aos dias mais complicados. Porque a vida era simples, porque o caminhar criava tempo para a alma, para o aproveitar das pequenas coisas, como uma flor, uma aldeia bonita, um bosque cerrado. Criava espaço para a gratidão pelo sol que abria depois do aguaceiro, pelo banho de água quente no final no dia. 

    Conheci casais, pais e filhos, amigos e almas solitárias. Percebi que mesmo os que caminhavam sós apreciavam a companhia. Perguntei-me muitas vezes o porquê de estar a fazer quilómetros sem fim. E o porquê de tanta gente fazer mesmo. Porque havia momentos em que isso me parecia absurdo. O porquê desta massa anónima que marcha diariamente rumo a Santiago. O que faz o ser humano largar todas as comodidades durante uma semana, um mês, seis meses, para vaguear por aí? Partilhar quartos em albergues, banhos e cozinhas comuns. Partilhar dores e feridas, nos últimos quilómetros do dia, em que os passos se tornam mais dolorosos e conscientes. Não seria melhor estar confortavelmente no sofá? O porquê da satisfação da chegada ao ponto seguinte? O porquê da alegria em levantar ainda de noite e ver o alvorecer, os primeiros raios de sol e caminhar... simplesmente caminhar...




Encontrei marcas, pequenos altares, locais de homenagem, de sinais de fé.




    Encontrei sinais de promessas, nomes de entes queridos, bilhetes com mensagens várias: de alento, de despedida, pedaços de almas perdidas em busca não sei bem do quê. 







    Encontrei serenidade e angústia, alguns fantasmas e alguns medos. Senti-me forte e senti-me frágil. Houve tempo para o silêncio e para o diálogo. Houve tempo para o alegre partilhar de experiências com  pessoas tão diferentes e de países tão longínquos como a Austrália e o Brasil. 
    E houve a missa do peregrino, na Catedral de Santiago de Compostela, um local repleto de boa energia, uma missa rezada a várias vozes, a várias línguas, numa igreja cheia de pessoas tão diferentes e tão iguais. Uma celebração que avivou em mim a ligação a algo que nos transcende, a Deus que tudo une. Por fim o ritual do bota-fumeiro que me trouxe as lágrimas aos olhos, não sei bem porquê, numa emoção de algo que ao longo dos séculos resume o caminhar de milhares de peregrinos. 

    Por fé, busca espiritual ou por desporto, cada qual traça o seu percurso. Cada um sente-o de forma particular. Fica a sensação comum de que um dia há que voltar. Fica a percepção de que tudo está ligado: homem, terra e Deus. Fica a certeza da unicidade, da continuidade de tempo e espaço.

O caminho faz-se ao caminhar! Bom caminho a todos!


Comentários

  1. Adorei o texto. Nele está concentrado o verdadeiro sentimento de percorrer o caminho. "Fica a sensação comum de que um dia há que voltar." E fica mesmo...

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  2. Excelente Alexandra belo resumo dessa magnífica aventura que vocês realizaram. A verdade é uma uma vez realizado o caminho nada fica como antes.
    Beijinhos e Abraço ao Sérgio.

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  3. Bela análise Alexandra, sentiste de facto o que é, Caminho e penso que não irás ficar por aqui, normalmente quando acabas um já estás a pensar qual será o próximo. Ultreia.

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  4. Um caminho que trouxe conhecimento, certezas, emoções, muitas vivências.
    Obrigada Alexandra por esta tua partilha. Uma descrição simplesmente fantástica !

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  5. Bem haja quem leu estas palavras e quem delas tirou algum proveito. Como sempre o que aqui escrevo é o espelho do que sinto. Ultreya e Suseya!

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  6. O teu relato é algo que transcende as palavras...

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